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O gerencialismo utilitarista na produção acadêmica em saúde coletiva: a importância de ensaios críticos

Autores: 

Luis David Castiel1, Danielle Ribeiro de Moraes2, Cassius Schnell Palhano Silva1

Esta carta pretende trazer contribuições para o debate com vários pesquisadores do campo da Saúde Pública Coletiva com base no texto de Kenneth Rochel de Camargo Jr., Produção Científica: Avaliação da Qualidade ou Ficção Contábil? 1.
Antes de tudo, consideramos que a crítica não necessariamente está obrigada a veicular uma postura “propositiva” – até porque, em muitas circunstâncias, esta pode tender a uma perspectiva instrumental capaz de incidir em um certo reformismo, que não altera o processo problemático em sua estrutura, apenas o ajusta. Isso faz lembrar, mesmo parcialmente, a máxima que reduz as margens de vislumbrar avanços políticos substantivos por ser a política “a arte do possível”…
Parece haver uma assunção de que não temos alternativas maiores diante da atual realidade acadêmica que produz injunções aparentemente inescapáveis que definem e assumem uma inexorabilidade quanto a mudanças maiores, que escapem à perspectiva utilitarista dominante. Inspirados em Zizek 2, tentamos apontar para as supostas origens das dimensões precarizantes desse panorama e, quiçá, “arriscar o impossível” e crer que, até se for o caso, milagres acontecem.
Inegavelmente, as contribuições de todos, com base no texto disparador do debate, de uma forma ou outra, desenvolvem ideias importantes em relação ao âmbito da avaliação bibliométrica. Não cabe, numa carta, entrar nas especificidades de cada contribuição. Mas, salvo equívoco de nossa parte, não conseguimos perceber de maneira bem definida nenhuma crítica ao contexto de onde emana a perspectiva avaliativa dominante, algo que avaliações qualitativas não irão alterar sua essência utilitarista.

Considera-se uma suposta falta de ousadia na produção de “inovações” avaliativas que consigam desvelar melhor o arisco objeto “qualidade da produção acadêmica”. E a nossa comunidade acadêmica é convocada para subsidiar o trabalho dos comitês de avaliação. Parece-nos que não é absurdo levantar dúvidas sobre as características de organicidade dessa “comunidade acadêmica”.

Em geral, quem assume lugar nesses comitês como representantes dessa comunidade são aqueles que jogam o jogo (nos termos de Bourdieu) e pontuam bem nos escores bibliométricos vigentes. E, também, cabe sinalizar a necessidade de se discutir como o campo da saúde coletiva se reconfigura de modo importante diante dessas contingências em uma arena de primazia de vias empiricistas de produção de artigos, cujas publicações são realizadas em contextos cada vez mais competitivos.

Então, tomamos a liberdade de manifestar nosso desconforto com o atual enfoque gerencialista vigente na nossa academia. Em termos esquemáticos, tal enfoque considera como centrais as questões sob a égide da gestão, sob a forma de metas a serem alcançadas, de produção de inovações que tendem a ser encaradas econometricamente, da avaliação mediante índices de produtividade, sob o primado da relação entre fins e meios etc.Mais importante ainda, isso ocorre no contexto do que Chauí 3 designa como a passagem da universidade como instituição – que tem a sociedade como referência em termo de normas e valores – para a organização operacional – que tem a si mesma como referência em competição com outras equivalentes com as mesmas metas (a disputa pelas notas mais elevadas dos cursos de pós-graduação no âmbito da saúde coletiva ilustra este aspecto). Temos, então, a universidade operacional, que se define e organiza pelas relações entre meios e fins, como mencionado acima 3.
Assim, torna-se uma decorrência lógica que a avaliação desse modo de trabalho só pode ser realizada em termos pertinentes a organizações segundo análises de custo/benefício, baseadas na ideia de produtividade bibliometrizada, determinando se os custos geraram os benefícios esperados. Uma questão importante é quem estipula e quais são esses fins e benefícios e para quem.

A nosso ver o que está em jogo é a lógica gerencialista utilitarista da avaliação da produtividade acadêmica que enfatiza mormente artigos que resultem de investigações empiricistas, prioritariamente quantitativas, mas, também, por que não, qualitativas. Aliás, esse formato de avaliação é justificado pelo fato do financiamento provir de fundos públicos e que é dever certificar-se do seu bom uso. Claramente, estamos no âmbito das análises de custo/benefício. Será possível, nesses termos, criticar o provedor desses fundos?

Neste ponto, pretendemos trazer uma contribuição (inspirada em importantes sinalizações de Gil Sevalho): a indicação da reduzida importância (com raras e honrosas exceções) de um formato relevante no contexto crítico da produção acadêmica em certos âmbitos disciplinares, mas que aparentemente se desvalorizou no campo da saúde coletiva. Trata-se do artigo sob o formato ensaístico, que, em geral, nem mais tem lugar nas categorias de submissão de tipos de artigos.

Para ilustrar e encerrar sem mais delongas esta carta, tomamos a liberdade de recortar e colar trechos de ensaios que falam da importância desse formato para a crítica e a exercem. Aí está incluída a obra seminal O Ensaio como Forma, de Theodor Adorno 4 e, também, do educador Jorge Larrosa 5 – justamente utilizando esse formato para exercer a crítica ao atual estado de coisas na academia. Algo que se aplica muito bem ao atual contexto sanitário-coletivo.
“ Os ideais de pureza e asseio, compartilhados tanto pelos empreendimentos de uma filosofia veraz, aferida por valores eternos, quanto por uma ciência sólida, inteiramente organizada e sem lacunas, e também por uma arte intuitiva, desprovida de conceitos, trazem as marcas de uma ordem repressiva. Passa-se a exigir do espírito um certificado de competência administrativa, para que ele não transgrida a cultura oficial ao ultrapassar as fronteiras culturalmente demarcadas ” 4 (p. 22).
“ O ensaio nasce com a crítica, é o gênero da crítica. No entanto, talvez seja preciso corrigir o que entendemos por crítica. Em primeiro lugar, se o ensaio é o gênero da crítica, é porque é o gênero da crise, da crise de uma certa forma de pensar, de falar, de viver. A experiência do presente faz desse mesmo presente um momento crítico, de transição, de mutação. E é nessa mutação que o ensaísta se quer inserir. O ensaio é a escrita de um tempo inseguro e problemático ” 5 (p. 38).
“… No ensaio, não se trata do presente como realidade, mas como experiência (…) . Dar forma a uma experiência do presente. O que interessa (…) não é a verdade de nosso passado, mas o passado de nossas verdades. Sempre se trata de desnaturalizar o presente, de estranhar o presente, de converter o presente não em um tema, mas em um problema, de fazer com que se perceba quão artificial, arbitrário e produzido é o que nos parece dado, necessário ou natural, de mostrar a estranheza daquilo que nos é mais familiar, a distância do que nos é mais próximo ” 5 (p. 34).

REFERÊNCIAS
1. Camargo Jr. KR. Produção científica: avaliação da qualidade ou ficção contábil? Cad Saúde Pública 2013; 29:1707-30. [ Links ]
2. Zizek S, Daly G. Arriscar o impossível: conversas com Zizek. São Paulo: Martins Fontes; 2006. [ Links ]
3. Chauí M. A universidade pública sob nova perspectiva. Rev Bras Educ 2003; 24:5-15. [ Links ]
4. Adorno TW. Notas de literatura I. Rio de Janeiro: Editora 34; 2003. [ Links ]
5. Larrosa J. A operação ensaio: sobre o ensaiar e o ensaiar-se no pensamento, na escrita e na vida. Educação e Realidade 2004; 29:27-43. [ Links ]
Recebido: 12 de Novembro de 2013; Aceito: 14 de Novembro de 2013
Correspondência L. D. Castiel. Departamento de Epidemiologia e Métodos Quantitativos em Saúde, Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca, Fundação Oswaldo Cruz. Rua Leopoldo Bulhões 1408, Rio de Janeiro, RJ 21041-210, Brasil. luis.castiel@ensp.fiocruz.br

Colaboradores
L. D. Castiel, D. R. Moraes e C. S. P. Silva contribuíram igualmente na produção do texto.

 

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